[DEIXA QUE EU CONTO]
MEREDITH
A calçada que seus pés descalços tocavam, ela sabia, eram tão ásperas quanto às palavras que ouvira outrora, tão frias quanto as lágrimas que lhe escorriam dos olhos pelo pescoço lânguido. Ao perambular pelas ruas, sem destino certo, deixou que os ruídos serpenteassem em seus ouvidos e que a brisa açoitasse a sua pele e fizesse voar suas roupas ainda manchadas com o sangue de quem tanto amara. Não tinha saída, ela também sabia. A vida lhe passava como um borrão, como algo que pudesse lhe escapar pelos dedos. Enquanto caminhava, ela lembrava dos últimos acontecimentos, num misto de dor, fúria e um sofrimento tão palpável que lhe sufocava a garganta.
Foi há seis horas, e nunca, em nenhum momento de sua pacata vida na cidade, Meredith pensou que o dia 23 de julho de 2008 terminaria daquela forma. Há seis horas, a realidade do agora ainda era um pesadelo distante e intragável. Meredith perdeu o emprego de corretora e, no auge dos 38 anos, não tinha tantas perspectivas. Ao chegar em casa naquela noite após a demissão, no entanto, não havia sido somente o emprego que ela havia perdido. O cheiro agridoce e ferrenho da tragédia lhe atingiu as narinas antes mesmo que entrasse. A porta estava trancada, como de costume, mas este fato corriqueiro não lhe deu nenhum alívio, destrancou a porta com cuidado e entrou…
A casa revirada era um indício, móveis quebrados, o odor metálico de sangue, os cristais da prateleira de cor âmbar que antes enfeitavam o lado esquerdo da sala, agora jaziam em estilhaços no chão. Mais adiante, outro indício da tragédia, o sangue do qual sentira o cheiro formava uma trilha espessa no chão, indicando, mesmo que de forma inconsciente, o local para onde ela deveria ir. Movida pelo desespero do que vira, ecoou na mente os nomes dos filhos, mesmo que da boca não lhe escapasse nenhum som. Não os encontrou de imediato, os dois filhos pequenos, mas não precisou avançar muito para encontra-los caídos ao pé da lareira. Ela sentiu derramar do próprio sangue ao ver o dos filhos escorrer no carpete caro que cobria o piso de madeira da sala de visitas. Ver seus sorrisos apagados fez inflamar em si o mais terrível dos sentimentos, como se mil facas lhe atravessassem o peito. Correu ao encontro do que naquela manhã chamou de “meus amores” quando uma imagem na porta da cozinha lhe chamou atenção, o marido. Ela soube então…
De posse da arma que comprara no intuito de defender a família em algum momento, olhou-a com um pedido de perdão nos olhos cinzentos que há muito tempo a conquistaram. Viu nele o reflexo do próprio desespero. Como se também se sentisse perdido. Tudo se passava lentamente e os sentidos de Meredith, agora, estavam em alerta. Havia visto sinais de descontrole por parte de seu marido, quando este também perdeu o emprego dois anos antes, mas não quisera acreditar. Agora a verdade estampava o chão da sala e ela sabia. As palavras saíram ásperas e carregadas de dor como se ele fizesse esforço para pronunciá-las: “Fui eu, bebi de mais, não sei o que aconteceu comigo…”.
Era novamente a velha desculpa, mas desta vez com um peso maior, muito maior. A mesma desculpa que usara tantas vezes para justificar comportamentos agressivos e estranhos, como tinha sido meses antes quando, por culpa do álcool, avançou um sinal vermelho e quase atropelou uma idosa que passava naquele momento. Também havia sido culpa do álcool quando a agredira algumas semanas atrás e, muitas outras culpas que não cabem citar…
Tomada por um ímpeto de raiva e desespero, arremessou-se contra ele iniciando sua primeira batalha corporal. Ele não recuou, estava armado e ela sabia. Mas isto não a impediu de atacá-lo com as unhas afiadas e marcar o seu rosto com três cortes. Não ficou surpresa quando, no auge de sua batalha, o cano frio da arma pressionou suas costelas, pelo contrário, fez o que vira muitas vezes nos filmes de ação que seu marido insistia em assistir aos sábados à noite, agradeceu-lhe em pensamento por isso. De posse dos últimos resquícios de força e diante da debilitada situação e confusão emocional que ele se encontrava, Meredith girou a arma em direção oposta quando sentiu o gatilho ser puxado e o odor metálico se instalou novamente no ar…
O som gutural que escapou da garganta do homem obscuro a sua frente era o que lhe confortava a alma. Ele fora atingido, e ela sabia. Tombou para trás no impulso de se afastar, a arma caindo de lado, foi o que Meredith precisava, e queria. Com sua mão pequena e trêmula segurou a arma apontada em direção àquele que um dia roubou seu coração, numa tarde ensolarada e quente perto do mar. Antes que ele proferisse qualquer outra palavra, o gatilho foi puxado mais uma vez naquela noite. O corpo desfalecido de seu marido era mais um para corroborar com a cena criminosa na sala de estar…
Sua mente estava em um borrão, seus pensamentos já não eram coerentes e há muito havia perdido a capacidade de falar. Ao chegar perto dos filhos mais uma vez, abraçou-os por aquilo que ela sabia ser a última vez. As lágrimas salpicaram-lhe o rosto e o choro desesperado finalmente veio, o sangue que lhe manchavam as vestes eram daqueles que se foram pelas mãos do homem que acabara de, também, tirar a vida. Não pôde evitar comparações, se tornou uma assassina como ele, e ela sabia.
As sirenes cantaram ao longe, no seu rosto lágrimas secas, os pés puseram-se a correr como se sua vida dependesse daquilo, perdendo os sapatos pelo caminho e pisando no chão gélido da rua, precisava fugir, não de seu julgamento, mas da dor que se instalava cada vez mais insuportável. Ao andar sem destino, parou onde tudo começou, no mar… Onde conhecera aquele que um dia lhe tiraria seus amores e lhe obrigaria a ser como ele.
Agora, seus pés descalços tocavam a areia branca e imaculada da praia, a correnteza lhe chamava como pedidos de socorro dos filhos, as lágrimas que escorriam pelos cantos dos olhos lhe atingiam os cantos da boca. Afogava-se na própria dor. Continuou andando até deixar-se envolver pelas águas frias do mar. Não se importou, não teria mais vida sem os filhos. A água do mar tinha o mesmo gosto de suas lágrimas, no fundo, ela sentiu alivio, como se tivesse livrado o mundo do mal.
By Geissiane Lustosa